O Fenômeno da Tokenização de Comunidades
Entenda como a tecnologia blokchain está moldando novas formas de interação entre fãs e marcas.

Entenda como a tecnologia blockchain está moldando novas formas de interação entre fãs e marcas

Tokenização de comunidades: interação e engajamento via blockchain

Com a chegada da era da criptoeconomia, estamos entrando em uma nova fronteira na utilização da tecnologia blockchain em nossas vidas – saindo de uma visão estritamente financista (como víamos até recentemente, focada na compra e venda de criptoativos) e avançando em diferentes frentes do nosso cotidiano. Assim, vemos emergir possibilidades que vão desde a utilização do potencial transformador dos contratos inteligentes na otimização de operações em múltiplos segmentos, até a amplificação das interações e dos relacionamentos entre participantes dentro de grupos com interesses comuns.

Esses grupos podem ser melhor representados pelas comunidades, que essencialmente são compostas por pessoas que dividem propósitos, ideais e valores, mantendo grande conexão emocional e alinhamento entre seus membros e seu objeto de interesse comum – que, em muitos casos, podem ser marcas (com toda carga de significados que elas carregam).

O escritor Mark Schaefer, autor do livro “Belonging To The Brand: Why Community Is The Last Great Marketing Strategy”, enfatiza que uma comunidade possui muito mais profundidade do que uma audiência, justamente pelo forte relacionamento, senso de pertencimento e sentimento de identificação de seus membros com as aspirações e valores contidos em uma marca – tornando uma espécie de entidade autossustentável que transcende a própria marca ou a personalidade que a inspira, podendo se organizar e conduzir discussões e ações de forma autônoma (mesmo quando seus criadores e colaboradores que trabalham diretamente com ela, e em nome dela, não estão presentes).

Assim, Schaefer advoga que os profissionais de marketing devem concentrar-se nas comunidades porque as pessoas querem ter uma ligação com outras pessoas que tenham interesses e desejos semelhantes com base nas suas necessidades intelectuais, psicológicas e emocionais – trocando experiências entre si, se aproximando, crescendo e aprendendo juntas. Construir uma comunidade ao redor de uma marca atende a essas necessidades do cliente, ao mesmo tempo em que amplia o seu valor comercial e fortalece elementos ligados à fidelidade.

Olhando para o contexto da tecnologia blockchain, vemos os Fan Tokens (que são, basicamente, tokens de utilidade) e os NFTs sendo atualmente utilizados como ferramenta para que diferentes marcas possam engajar de maneira mais profunda e interativa com seu público, fortalecendo, assim suas próprias comunidades de usuários, aumentando a fidelidade e retenção com o passar do tempo – enquanto comunicam os elementos e valores que tornam essas mesmas marcas únicas. Assim, quando dizemos que uma comunidade é tokenizada, implica que ela utiliza tokens como elemento auxiliador em sua coordenação e na conexão junto aos seus membros, operacionalizando ações inovadoras e fomentando múltiplas maneiras de amplificar as relações em seu ecossistema – seja através da entrega de meios que possibilitem novas formas de expressão para o usuário, de experiências agradáveis, ou outras recompensas estimulantes. A tendência é relativamente nova e alguns interessantes casos começam a despontar mundo afora.

Transformando comunidades ao redor do mundo através da blockchain

Muitas empresas têm seguido esse caminho de experimentação na criptoeconomia, mas se há uma que tem sua comunidade como pilar principal – inclusive dependendo do engajamento dela para existir – essa empresa é a Reddit, startup que se define como “uma rede de comunidades onde as pessoas podem mergulhar em seus interesses, hobbies e paixões”. A empresa lançou um projeto envolvendo NFTs que tem sido considerado um case de sucesso neste sentido.

Reddit Collectible Avatars (divulgação)

Em julho de 2022 a Reddit apresentou seu programa de “Avatares Colecionáveis”, edição limitada de imagens para perfil na rede baseados no mascote da plataforma, chamado Snoo. Esses avatares foram criados por artistas independentes que fazem parte da comunidade da Reddit, sendo utilizada a rede Polygon como infraestrutura. Os detentores dos avatares ganham também alguns benefícios na rede (como prioridade das suas ações e comentários) e podem customizá-los, mantê-los, vende-los ou trocarem com outros usuários. Diferente de coleções como BAYC, que dá amplos direitos sobre a propriedade intelectual contida no NFT, essa coleção é mais limitada, permitindo apenas o seu uso de forma não-comercial.

Além do envolvimento ativo da comunidade na criação e utilização dos itens, há alguns outros elementos que foram determinantes no sucesso deste projeto, que atraiu 4,25 milhões de participantes em apenas 6 meses:

Manter o conceito simples, sem citar que se tratava de NFTs: Intencionalmente, a empresa omitiu a palavra NFT, dando foco na ideia central e objetivo do projeto, enquanto usava a tecnologia Blockchain nos bastidores. Neste momento da curva de adoção e da percepção do público ainda turva, talvez tenha sido uma boa ideia.

–  Jornada de aquisição simplificada: O processo de compra dos colecionáveis, via interface chamada “Collectible Avatar Shop”, era simples e também aceitava pagamentos tradicionais (não apenas criptoativos, como muitas iniciativas) o que retira uma grande fricção do processo. Até a carteira – chama aqui de “Vault” ou cofre em português – era criada de forma automática para guardar o avatar, sendo impossível usá-lo sem cria-la.

Gerando engajamento emocional com os usuários, permitindo-os se expressarem de uma nova forma na plataforma: A posse de um avatar representava uma conquista dentro da rede, um próximo passo na relação com a marca e no status do usuário dentro da comunidade. A possibilidade de personalizar esse avatar e mostrá-lo com orgulho ao mundo também reforçava este vínculo.

 – Gerando valor para os criadores via fortes incentivos: Os artistas independentes da comunidade Reddit eram convidados a participar e ficam com 95% dos lucros das vendas primárias e 5% dos royalties de revenda. Através dessa estrutura de pagamento, a plataforma reconhece e impulsiona sua dedicada base de usuários, ao mesmo tempo em que oferece fortes incentivos financeiros.

Além desse caso, que utilizou o potencial dos NFTs para alavancar iniciativas inovadoras em seu ecossistema, temos também diversos exemplos da utilização de Fan Tokens nesse sentido. Em resumo, os Fan Tokens são ativos digitais relacionados a equipes esportivas, clubes ou jogadores, proporcionando valor para quem os possui (em função de sua cotação de mercado) e permitindo acesso a benefícios únicos (como acesso aos jogadores e áreas VIP), além de produtos exclusivos, distribuição de dividendos e possibilidade de votação em deliberações diversas relacionadas ao time.

Com a implementação desse instrumento, o envolvimento dos fãs com equipes esportivas deixa de ser passivo, gerando um engajamento maior e interatividade com a entidade em variados cenários – sobretudo na divisão de ganhos financeiros e na tomada de importantes decisões. Grandes clubes internacionais como Barcelona, PSG, Juventus e Manchester City já lançaram seus Fan Tokens. No Brasil, temos o Vasco, Grêmio, Flamento, Atlético Mineiro, Corinthians e São Paulo, dentre outros, que aderiram a esse movimento.

Experiências bem-sucedidas no mercado brasileiro

The Campari Blockchain (divulgação)

Um outro caso interessante que foi implementado no Brasil envolveu a gigante global de bebidas Campari, empresa que possui uma forte comunidade e utilizou o poder dos tokens para amplificar o relacionamento com seus consumidores e impactar os demais agentes que permeiam o seu ecossistema. Através do suporte da startup goBlockchain e da consultoria de inovação TrêsPontoZero (TPZ), a empresa criou o The Campari Blockchain, uma espécie de “clube de fidelidade” para fãs da bebida que integra, também, bartenders e artistas a essa comunidade, no desenvolvimento de ações e experiências únicas (incluindo viagens e acessos a encontros exclusivos) que têm os NFTs como ferramentas habilitadoras.

Em um episódio do Fintech Talks Podcast, conversei com Vinícius Low (CMO da Campari no Brasil), Fernando Velicka (COO da goBlockchain) e Paulo Martinez (Sócio da TPZ), que me contaram mais sobre a iniciativa e seus resultados.

Segundo Vinícius Low, a Campari sempre esteve envolvida no mundo das artes – patrocinando desde grandes festivais de cinema como o de Cannes e o de Veneza, como eventos musicais e exposições de artes plásticas. Um passo evolutivo natural era fazer com que a sua comunidade, que se conecta diretamente com as ações desenvolvidas no campo artístico e é apaixonada por tudo que as bebidas da marca representam, fosse juntada a partir de ativos digitais.

Vinícius Low, CMO da Campari no Brasil

“Na prática, é como juntar tampinhas da Coca-Cola e trocar por um ioiô, só que em uma nova roupagem. De um lado, tem o drink que o consumidor procura e do outro, a tecnologia que permite continuar a conversa com ele depois que ele tem o contato com o drink – levando-o para uma comunidade de entusiastas.

Por que não trazer benefícios que estão externos a isso? Não só as experiências exclusivas que o consumidor final vai ter a partir das coleções e ativos que ele tiver, mas todo o fomento dessa comunidade nos NFTs que são vendidos – com a criação de um fundo que reverte isso em favor dos bartenders, a outra ponta do ecossistema.”

Vinícius Low

Ainda existem poucos provedores que desenvolvem e ofertam soluções de tokenização de comunidades para empresas, mas o mercado vem crescendo e é promissor.

Fernando Velicka, COO da goBlockchain

Segundo Fernando Velicka da goBlockchain, startup provedora de tecnologia nesse projeto, é importante não enxergar o blockchain como uma solução para tudo, mas como um viabilizador de um plano mais amplo relacionado a loyalty (fidelidade) e relacionamento. A empresa faz a oferta de um ambiente digital, em cima de uma solução no-code, onde a marca possa facilmente gerenciar isso tudo. O cliente não tem a necessidade de entender o tema em profundidade nem de programar em linguagens como solidity, por exemplo. É uma espécie de CRM 3.0, que torna mais fácil o gerenciamento desse relacionamento e a metrificação das ações desenvolvidas, com feedback contínuo de pessoas que são promotoras voluntárias da marca e se sentem parte dela.

Para Paulo Martinez, sócio da consultoria TPZ que desenvolveu a modelagem do ponto de vista estratégico, iniciativas de Web3 – onde se inserem projetos como esse – são a “nova transformação digital” em cima de uma infraestrutura digital mais avançada.

Paulo Martinez, Sócio da TPZ

“As marcas podem se beneficiar desse tipo de infraestrutura como um novo conector de relações, pois partimos de uma construção de mundo mais linear para uma visão mais ecossistêmica – onde é necessário cuidar mais do design das relações, do design das experiências, e isso é muito importante na construção de comunidades e na aproximação das marcas com seus públicos e fãs, pois permite uma forma mais aprofundada de se relacionar.”

Paulo Martinez

Por fim, a avaliação da Campari em relação aos resultados foi bastante positiva, tanto em termos de brand awareness (reconhecimento de marca) quanto na capacidade de realização de ações inovadoras junto à sua comunidade – podendo medir de forma precisa os seus impactos.

A empresa deve levar o projeto para outros países e Vinícius Low reconhece que os riscos de implementação de iniciativas desse tipo são baixos quando comparado a outras alternativas tradicionais de mercado. Como recado a outras empresas, Low diz que “quem entrar mais cedo sairá na frente” e reforça que, para estar na conversa do consumidor atual e do futuro, é preciso adotar novas abordagens e tecnologias, mantendo a simplicidade e conveniência nesse processo.

A evolução da conexão

Em essência, todo o movimento abordado aqui diz respeito a uma nova forma de orientar não só o marketing, mas diversas decisões estratégicas de um negócio, com base na comunidade que orbita uma determinada marca. A tecnologia blockchain vem como uma ferramenta poderosa para juntar tudo isso, tornando-se um grande diferencial quando bem utilizada.

Contudo, para que as iniciativas de tokenização de comunidade funcionem, de fato, tudo precisa ser palatável e fácil de usar, sem perder de vista o objetivo principal, que é ampliar o engajamento com sua comunidade – ao mesmo tempo em que se fornece instrumentos para que ela cresça e se desenvolva a partir dos seus próprios membros. Deste modo, é possível potencializar o efeito da marca sobre seus consumidores, criando ativações que transcendam a relação de consumo que a gente tem tradicionalmente – atingindo um nível profundo de conexão. No contexto da Web3, será fundamental para as empresas utilizarem diferentes recursos para criar, desenvolver e nutrir suas comunidades e os ecossistemas no qual suas marcas estão inseridas, garantindo, assim, sua perenidade na era da descentralização e da colaboração. O movimento está apenas começando, mas deve ganhar cada vez mais adeptos à medida em que mais casos emerjam e a criptoeconomia se fortaleça no cotidiano das pessoas.


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