Os tentáculos silenciosos da China no mercado financeiro global

A estratégia expansionista das big techs orientais está transformando o mundo digital

* Artigo do autor Bruno Diniz, originalmente publicado no portal noomis neste link.

Em setembro de 2018, durante um evento fechado de um fundo de investimentos do Vale do Silício, Eric Schmidt, ex-CEO do Google, disse que até 2028 teremos “duas internets” no mundo: uma liderada pelos EUA e outra pela China. A afirmação foi justificada pelo fato de a China estar atualmente lançando mão de um ambicioso plano de influência global que tem o mundo digital e os investimentos externos em infraestrutura, logística e telecomunicações como principais armas. Esse movimento, batizado de “Belt and Road Initiative”, visa interligar à China países na Europa, Ásia e África através de grandes projetos de infraestrutura, incluindo vias de transmissão de dados (por meio de cabos submarinos e satélite) que sustentam uma “internet própria” gerida pelo país. Apesar de incluir inicialmente os países que compunham a histórica “Rota da Seda” continental (que foi um importante caminho comercial para mercadores dos tempos antigos), o projeto também visa incluir outras regiões, como a América Latina (na qual países como o Chile já manifestaram interesse em participar), ampliando ainda mais a influência chinesa pelo mundo.

Esse grande plano governamental acaba tendo como participantes as principais empresas de tecnologia do país, que também ampliam, pouco a pouco, sua relevância fora da China em diversos setores da economia digital. Um exemplo é a Bytedance, companhia dona do popular aplicativo social TikTok, que virou febre entre jovens mundo afora.

No mundo financeiro, não é nenhuma novidade que a Tencent (dona do WeChat) e a Ant Financial (empresa do grupo Alibaba que tem como principal produto o Alipay) tornaram-se as principais soluções de pagamentos por lá, movimentando o equivalente a centenas de bilhões de dólares localmente. Apesar de não terem a mesma popularidade no resto do mundo, essas empresas têm, sistematicamente, feito investimentos em fintechs fora do país, abrindo portas para a influência chinesa na forma como pagamentos são realizados, através de transferência de tecnologia e utilização de sistemas computacionais próprios.

O sul e sudeste asiático, por questões geográficas e culturais, tornaram-se um dos primeiros terrenos dessa expansão silenciosa das Bigtechs chinesas, que acabam, também, por disputar entre si pela dominância nesses diferentes campos de batalha. Por lá, algumas fintechs do segmento de pagamentos digitais receberam investimentos do grupo Alibaba, como a EasyPaisa, do Paquistão; Paytm, da Índia; Bkash, de Bangladesh; Touch N’ Go, da Malásia (no qual foi estabelecida uma joint venture com a CIMB Group Holding, empresa mãe dessa solução); Mynt, das Filipinas (que é dona da plataforma de pagamentos Gcash); KakaoPay, da Coréia do Sul; Ascend Money, da Tailândia (que possui a carteira digital TrueMoney); HelloPay, de Singapura (solução que pertencia ao grupo de e-commerce Lazada, que foi comprada pelo Alibaba); e as empresas Dana e Akulaku, da Indonésia. Após seus investimentos, o grupo Alibaba traz para a mesa toda sua expertise no setor de pagamentos e iniciam um processo de transferência de tecnologia, que muitas vezes levam suas investidas a utilizarem sua infraestrutura de computação na nuvem (chamada Aliyun) para rodar as aplicações destas fintechs.

Ainda na Ásia, a Tencent fez movimentos menos agressivos que a Alibaba, mas ainda sim relevantes no segmento fintech, como investimentos no neobank NiYO voltado à trabalhadores e o Flipkart (empresa de e-commerce que teve o controle adquirido pelo Walmart e tem desenvolvido uma série de serviços financeiros), ambos da Índia; a plataforma de soluções financeiras digitais Voyager, das Filipinas; e o super app Gojek da Indonésia.

Na Europa, ambas empresas também têm buscado expansão, sendo que a Ant Financial já trabalhava ativamente em parcerias com instituições financeiras e fintechs locais para possibilitar o pagamento através do Alipay, algo bastante demandado por turistas chineses que chegam ao velho continente, e realizou seu principal movimento na região ao adquirir de forma discreta a gigante britânica Worldfirst, focada em câmbio e transferências financeiras internacionais. Essa aquisição veio certo tempo depois da tentativa de aquisição da norte-americana MoneyGram (do mesmo segmento) que acabou sendo barrada pelo governo dos EUA, frustrando o movimento de expansão ocidental da empresa fundada por Jack Ma. Já a Tencent adquiriu participação no neobank alemão N26, um dos principais bancos digitais da Europa.

Uma nova fronteira que passou a ser explorada pelas bigtechs chinesas é a América Latina, região que tem atraído olhares de muitos investidores internacionais a medida que são percebidos o potencial de negócios voltados à inclusão financeira e a possibilidade de disponibilização de produtos e serviços financeiros para uma parte da população que, apesar de ser desbancarizada, dispõe de acesso à smartphones. No México, a Ant Financial formalizou em 2018 um acordo com a Openpay (empresa de pagamentos do grupo BBVA), possibilitando que mais de 870 milhões de usuários ativos do Alipay possam fazer compras nas empresas afiliadas da Openpay. Na Argentina, apesar da intensa crise econômica, a Tencent investiu no neobank Ualá, principal fintech desse tipo no país.

Olhando para o Brasil, já são percebidos alguns movimentos dos gigantes chineses no mercado fintech local. A Tencent realizou seu primeiro investimento por aqui em outubro de 2018, quando colocou cerca de US$ 180 milhões no Nubank. Na divulgação do aporte, o Presidente da instituição, David Vélez, chegou a mencionar que esperava aprender bastante com a experiência da Tencent em seu ganho de escala no mercado chinês, apontando para um possível compartilhamento de tecnologia com seu investidor. A Ant Financial, por sua vez, adquiriu US$ 100 milhões de ações da Stone em sua oferta pública realizada na Nasdaq no ano passado, montando posição em uma empresa de pagamentos brasileira dias depois do anúncio de investimento da sua rival. Além desse movimento, a gigante Fintech chinesa avançou ainda mais esse ano ao contratar um Head para sua operação local. O nome escolhido foi Yan Di, ex-CEO da Baidu no Brasil, que (segundo fontes do setor) já dá os primeiros passos por aqui ofertando um produto de background checking à preços bem atrativos. Contudo, não há notícias concretas da entrada do produto Alipay, por enquanto.

Possíveis cenários de parceria e integração (como a realizada entre Ant Financial e Openpay no México) são factíveis nos casos da Stone e Nubank, tornando-os importantes postos avançados para essas bigtechs chinesas aqui na América Latina, permitindo uma entrada mais rápida desses players na região. Aquisições dessas investidas já seriam mais difíceis de ocorrer, dado o valor de mercado das companhias (nos dois casos, superiores a US$ 10 bilhões). Para se ter uma ideia, a última grande compra de uma empresa brasileira por chineses no setor de tecnologia aconteceu quando a Didi Chuxing, maior player de mobilidade da Ásia, adquiriu a 99 por US$ 300 milhões (cifra bem inferior aos valores mencionados anteriormente). Claramente, aquisições de companhias menores não seriam descartadas, principalmente no caso da Ant Financial, que já iniciou uma atuação direta no país. Enquanto hoje muito é falado sobre a entrada das Bigtechs norte-americanas no setor financeiro brasileiro, não podemos perder de vista a atuação asiática, que acontece de forma bem mais silenciosa e discreta. O plano chinês de expansão e influência está em curso e diferentes setores, incluindo o financeiro, fazem parte dele. Marc Andreessen, famoso investidor do Vale do Silício, disse uma vez no começo dessa década que “os softwares estão devorando o mundo”. Quase 10 anos depois, podemos certamente atualizar essa frase e dizer que “Os softwares chineses estão devorando o mundo” – e pelo andar da carruagem veremos isso se intensificar ainda mais na próxima década.


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